1 - BOSQUEJO HISTÓRICO DAS MÓS

José Gomes Quadrado

Mós, ou As Mós como também é conhecida, é uma freguesia do concelho de Vila Nova de Foz Côa e pertencente ao distrito da Guarda. É uma aldeia característica do Douro Superior, situada a 300 metros de altitude, num vale encaixado entre rosários de outeiros e de montes, atravessada por um ribeiro, uma linha de água do tipo torrencial que começa nas encostas de Sobradais (na vizinha povoação de Santo Amaro) e vai juntar-se ao ribeiro de Murça para terminar no rio Douro.

Os vestígios de actividades humanas encontrados no “castro” das Campanas e no sítio arqueológico do Castelo Velho permitem concluir que o povoamento do território que actualmente integra o termo desta freguesia terá começado na pré-história recente, ou mais concretamente no Calcolítico. Noutros sítios arqueológicos, como Aldeia Velha, Cruzinha (ou Necreal) e Sambado, ficaram testemunhos da civilização romana e da era medieval. Entre os instrumentos encontrados por Sá Coixão nas Campanas, avultam 12 mós manuais, sendo 11 mós dormentes (fixas ou “mós debaixo”) e apenas uma mó movente (ou andadeira). Também no Castelo Velho foram encontrados fragmentos em granito de ambas as mós.

E depois da fixação da população na margem direita do ribeiro, a herança e a provável prevalência das mós manuais contribuíram para perfilhar a hipótese delas poderem estar na origem do topónimo “As Mós”, já que, como escreveu Sousa Viterbo, “se usavam para moer onde não havia moinhos de água”.

Esta forma composta do topónimo tem como principal sustentação a secular grafia com que foi identificada a povoação, como comprova, por exemplo, uma procuração que remonta a 1380, passada pelos homens mais notáveis do vetusto concelho de Numão, nomeando “Joham Annes das moos“ como “lydimo avondoso procurador autor e mensageiro especial” para, nas cortes realizadas em Torres Novas, votar na eleição de D. Beatriz para suceder ao seu pai, o rei D. Fernando.

O facto do concelho de Numão (tal como muitos outros) ter apoiado esta sucessão legitimista, fez com que D. João I viesse a puni-lo, entregando o senhorio de todo o território concelhio ao poderosíssimo Conde de Marialva e seus descendentes. E só voltaria a ficar ligado à coroa no reinado de D. Manuel I.

Em 1527, D. João III ordenou o primeiro “numeramento” da população portuguesa que totalizava, então, 1 200 000 habitantes, tendo o lugar das Moos 52 moradores. Cerca de 10 anos depois, a 14 de Março de 1537, este mesmo rei pediu e obteve do Papa Paulo III permissão para unir a igreja das Mós à Universidade de Coimbra, uma administração que viria a durar cerca de 300 anos. Durante o tempo que durou o padroado universitário a freguesia, do ponto de vista religioso, foi bastante beneficiada: em 1566, passou a ser sede de vigararia; em 1655, foi reconstruída a capela de Santo António e em 1793, a antiga capela de Nossa Senhora da Graça foi ampliada, decorada e transformada na igreja matriz, substituindo a velha igreja, que acabou quase isolada no “Cimo do Povo”, funcionando como cemitério a partir de 1836.

Em 1758, por ordem do Marquês de Pombal, foi requisitada ao “vigario de Asmos” a elaboração dum relatório que na parte introdutória, esclarece: “Este lugar e Freguezia de Asmos hé da Província da Beyra Alta, Bispado de Lamego, Comarqua de Pinhel, Termo da villa de Freyxo de Numão.” E na resposta à 3ª pergunta, responde: “os vizinhos e moradores que tem sam cento, e onze, e o numero de pessoas entre mayores, e menores sam trezentas e dezasepte.”

A efectiva transferência da sede do concelho de Numão para Freixo acontecera cerca de 100 anos antes, ou seja, em meados do século XVII. Aqui foram assentando arraiais grupos sociais dominantes, incluindo os mais ricos e poderosos proprietários do termo das Mós. E foi um destes senhores que mandou construir, em finais do século XVIII, o único edifício brasonado da povoação, o “Chalé” situado na Portelinha, e não um dos riquíssimos viscondes de Asseca. Este edifício viria a ficar conhecido como “Casa do Campinhos”, por ter sido adquirido, em meados do século XIX, pelo conhecido “clã” fozcoense Campos ou Campos Henriques, que tinha como corifeu Francisco António Campos, o 1º Barão de Foz Côa. Uma aquisição que se teria ficado a dever ao facto das Mós ser um dos poucos locais onde não chegaram as funestas consequências das terríficas convulsões políticas e sociais que afectaram Vila Nova de Foz Côa e a maior parte da terras vizinhas (e não só) durante o período das Lutas Liberais.

Por Decreto de 31 de Dezembro de 1853, foi extinto o concelho de Freixo de Numão e a partir de 1854 a freguesia das Mós passou a depender judicial e administrativamente do concelho de Vila Nova de Foz Côa. E dentre as 11 freguesias anexadas, com um total de 1169 fogos, as Mós, com 112, era a quarta com maior numero de habitações, antecedida pela de Numão com 117 fogos.

A partir de meados de Abril de 1855, este alargado concelho foi invadido pela epidemia da “cólera morbus” ou febre amarela. Altamente contagiosa e mortífera, arrasou a população das Mós, cobrindo-a de luto, já que ceifava a vida a uma de cada grupo de três pessoas infectadas. Tendo atingido o auge em Agosto, a calamidade amainou logo nos primeiros dias de Setembro, facto que foi considerado um milagre, atribuído à intervenção da Mãe de Jesus. E a partir de então, a festa anual ao padroeiro S. Pedro passou a ser substituída pela festa grande a Nossa Senhora da Soledade, realizada no 3º domingo de Setembro, depois da vinda da respectiva imagem (de roca) assente num andor com o formato dum barco.

Quase 30 anos depois, teve lugar um acontecimento decisivo para a gente das Mós: a construção do troço da linha do Douro, entre a Quinta do Vesúvio e o ribeiro da Bulha, numa extensão de 21 Kms.

A primeira consequência foi a criação do lugar de Freixo – Mós, que até 1880 era apenas um simples passadoiro de quem embarcava ou desembarcava na secular Barca de passagem no rio Douro. Quem deu início à sua profunda transformação foi o dinâmico mosense António Augusto de Oliveira Mendes e a sua equipa de trabalhadores, que começaram por converter um pardieiro que ali existia num edifício onde funcionaria o único estabelecimento, numa área de alguns quilómetros, destinado a servir de apoio logístico a várias dezenas de trabalhadores que se ocupavam nas obras do caminho de ferro. Com os lucros obtidos foi construindo um conjunto de 30 casas, montando em algumas oficinas (entre elas uma forja), servindo outras para abrigar os obreiros recrutados. Depois, foi comprando e juntando terrenos onde viria a fundar a conhecida Quinta do Torrão e a capela de Santo António do Torrão, com um pequeno adro rodeado de grades e portão de ferro, formando um belo conjunto, que acabou por ser demolido quando ali foi construído o terminal da estrada nacional 324.

A partir de 10 de Janeiro de 1887, começou a circular o comboio entre o Pocinho e Campanhã, com paragem na estação de Freixo - Mós (assim designada até 1927), rompendo um secular isolamento, ligando a povoação às regiões do litoral, desde sempre mais abertas a novas influências civilizacionais e permitindo, acima de tudo, uma decisiva mobilidade geográfica e com ela o desenvolvimento duma mobilidade socioprofissional que começou por fazer das Mós uma terra de muitos ferroviários, para depois permitir o ensejo de alguns ingressarem em empregos no litoral, mormente, no Porto; ocasionado, ainda, que outros optassem pela emigração intercontinental, sobretudo, para o Brasil e para a África.

Além de grande empreendedor, Oliveira Mendes foi a maior benemérito das Mós e da sua gente. Bastará referir que: despendeu avultadas somas na canalização da água da fonte de Nogueira até ao “Cano”, que ainda hoje se mantém no centro da povoação; cedeu um edifício mobilado e devidamente apetrechado com o material didáctico, para nele funcionar a primeira escola do sexo feminino e socorreu os seus conterrâneos mais necessitados. Pelo seu grande altruísmo, foi justamente louvado pela primeira junta de freguesia republicana e homenageada a sua memória em 17 de Setembro de 1978; tal como já havia sido a de outro grande vulto da história das Mós, o seu contemporâneo e primeiro professor da escola do sexo masculino, José António Saraiva, ambas por iniciativa do ilustre mosense Dr. Joaquim Castelinho.

Na noite de 15 de Fevereiro de 1941, um terrifico ciclone assolou todo o País e nas Mós, para além de prejuízos individuais, deixou toda a gente consternada por ter derrubado o Olmo do Terreiro. Tão frondoso era que a sua copa cobria, praticamente, todo o Largo. E a consternação foi tal, que o povo lhe dedicou uns versos que terminavam assim: “Ó homens, não choreis mais / Pelo Olmo do Terreiro,/ Que caiu ...não volta mais!”

Mas voltou! Graças à tenacidade do então secretário da Junta, António Gaspar, que conseguiu o empréstimo do macaco que nas Oficinas do Pocinho estava destinado a levantar locomotivas. E o Olmo, após um grande desbastamento, foi erguido com a ajuda de novos, de velhos e rodeado dum pequeno muro. E durante cerca de meio século, continuou a abrigar todos os que procuravam a sua generosa sombra.

Foi neste mesmo ano que chegou às Mós a “febre do minério” que viria a inverter o acentuado decréscimo demográfico verificado na década anterior. Com o deflagrar da 2ª Guerra Mundial, a grande maioria dos agricultores mosenses virou volframista. E para além de residentes, esta opção viria a ser tomada, também, por alguns ausentes há vários anos, que vieram em busca do “eldorado”. Portanto, uma das primeiras e mais significativas consequências da “febre do minério” foi o aumento da população residente, que terá crescido cerca de 40%, ultrapassando um total de mil habitantes. Mas este histórico e provisório crescimento populacional ficou a dever-se menos ao retorno de mosenses e mais à fixação (quase toda transitória) de várias dezenas de famílias oriundas de zonas mais populosas do Alto Douro. Os seus homens vieram para trabalhar, sobretudo, na construção civil, já que naqueles breves quatro anos se construíram ou reconstruíram mais casas do que anteriormente acontecera em 2 ou 3 séculos da multissecular história da freguesia das Mós.

2 - TOPONÍMIA DAS MÓS

José Gomes Quadrado

Quase sempre a palavra Toponímia aparece a encimar uma lista de nomes geográficos relativos a uma determinada área geográfica. Mas aqui ela aparece a anunciar a intenção de contribuir para o esclarecimento da origem ou significado etimológico de alguns dos sítios da povoação das Mós e do seu termo, tentando “ler” o que cada palavra nos revela e, em certos casos, procurar encontrar explicação para os fenómenos relacionados com alguns dos nomes mais singulares, fundamentado na investigação de especialistas, distinguindo esta fundamentação da mera divagação toponímica. Em muitos casos, o sentido primitivo dum topónimo aparece-nos sob a forma de um substantivo ou nome comum, que pode ou não ter um carácter descritivo. Outras vezes, é um nome próprio, geralmente o nome de alguém que num tempo mais ou menos remoto foi dono duma propriedade existente nesse sítio. Neste singelo ensaio poderemos verificar que na nomenclatura geográfica das Mós avultam os nomes relacionados com os rosários de montes e vales que envolvem a povoação e encaixam outros sítios do seu termo. E cada uma destas designações mais não é do que a definição do respectivo fenómeno geomorfológico, pertencendo a respectiva terminologia à Geomorfologia ou Geografia Física.

Tratando-se aqui da Toponímia das Mós, terá inteiro cabimento começar por referir (mais uma vez) este topónimo. Quem se deu ao trabalho de ler outros meus escritos, nomeadamente o que veio publicado na Revista “COAVISÃO“ N.º 5, sabe que eu defendo a ideia de que o nome desta povoação terá origem no facto de em tempos antigos aqui terem prevalecido as mós manuais, ou “móos de braço”, como antigamente de dizia. Mas volto à carga para começar por dizer que não conheço topónimo que tantas vezes tenha “mudado” de grafia. Efectivamente, depois da fórmula medieval As Moos, tem sido designada de maneiras tão díspares, como: Asmos, As Mós, As Moz, Moz, Mós e, ainda, Mós do Douro.
No “Bosquejo Histórico das Mós” exprimi a opinião que me parece mais consensual, escrevendo: “Mós, ou As Mós como também é conhecida”, rejeitando o seguidismo de lhe chamar Mós do Douro.
Embora sendo um indefectível dourófilo, sempre considerei extravagante acrescentar-lhe este potamónimo, assim classificado por ser um nome geográfico cujo étimo mais remoto designava, apenas, o Rio. Tem a sua origem num vocabulário pré-romano, já que enraíza no radical céltico DW ou "DWR", «água» (ou água corrente) documentável no irlandês "dur" (1). Os autores gregos da Antiguidade chamaram-lhe Dorios e na língua latina passou a ser Durius. Em suma: o étimo remoto está naquele radical céltico e o étimo próximo no latim Dorius (variante de Durius). Como demonstra o nome que tomou com o aparecimento da língua portuguesa: Doyro e (mais tarde) Doiro ou Douro.
Também o nosso topónimo Penafria apresenta o elemento toponímico celta Pen que está na raiz do latim Pinna e aportuguesado deu Pena, significando penha, penhasco, penedo, pedra, cabeço, etc.. (No galês actual, pen significa cabeça), Temos então no nosso topónimo Penafria um nome celtico-latino: Pen e o latim frígida. Penafria significará, à letra: penha (fraga) fria.
O nosso conhecido Moninho que é considerado, pela generalidade dos autores, como tendo a origem no antropónimo (nome de pessoa) germânico (suevo ou visigótico) Munnius, Mas o etimologista, J. Pedro Machado, escreveu: " Também há a hipótese de se dever a nome ibérico de pessoa Munus, Muna. "(1).
Com proveniência em étimos latinos temos nomes como Freixo e Freixieiros. Segundo o que apurou José Leite de Vasconcelos, em " Textos Arcaicos" (pág. 203), aquele apresenta a seguinte série fonética:" fráxinu-(=frácsinu) > Fréiseno> > Fréixeno = Fréixeo > Freixeo > Freixo. E Freixieiros < man =" homem">
Chousas (ou Choisas) do nosso topónimo Vale das Chousas ou Vale das Choisas (como diz a gente das Mós) vem do latim Claudo e empregava-se para designar terras que serviam para pastagens de gado, aparecendo também como sinónimo de corte, curral, redil, etc., onde o gado pernoitava. Viterbo, no Elucidário (pág. 99) apresenta Chousa como sinónimo de tapada.
Também do latim palumba (pomba brava) provém o prefixo pomb que com o sufixo eira deu o topónimo Pombeira. E Pombal, com o sufixo al, depois de ter passado por Palumbar (como ainda hoje se diz em mirandês). Este topónimo dever-se-á, certamente, ao característico pombal circular que, até ao início dos anos 40 do século o XX, existiu no princípio da empinada e longa encosta que se estende até ao Ninho do Corvo. E quanto à origem do nome Monte da Pombeira, será que se deve a alguma numerosa colónia de pombas bravas que por lá existiu?
Também do nome duma ave deriva o topónimo Vale Minhoto, que vem de minhoto (milhafre) ave de rapina.
Vale Manfonso e Vale Mampaz, são dois topónimos com elementos de origem germânica (sueva ou visigótica). No primeiro, Vale Man-Fonso, temos: Vale (vulgaríssimo na nossa toponímia) está filiado no latim Valle; Man no gótico Manna, homem, (tal como em Mangualde) e Fonso, grafia medieval de Afonso, nome também de origem germânica. Portanto, Vale Manfonso significaria (à letra): Vale do Homem Afonso. O erudito Dr. Pedro Augusto Ferreira (Abade de Miragaia) também nos fala do elemento man, incorporado na composição do gentílico normando: nort + man = homem do norte.
No segundo topónimo a única diferença está no sufixo paz, do latim pace.
Se me é permitido divagar um pouco, diria que Mampaz faz lembrar Mampastor que no português antigo significava juiz, responsável pela justiça, sendo levado a pensar que Mampaz poderia significar homem ou juiz de paz. E continuando a divagar, será lícito imaginar que tanto este como aquele Afonso seriam os principais proprietários em cada um dos vales. "Se non é vero é bene trovato"...
Depois da influenciação sueva e visigótica, entre os séculos V e VII, veio a influência árabe, como consequência do domínio muçulmano. Nas Mós temos uma rua chamada da Atafona, dada a existência de um moinho de moer sumagre. Aquele nome provém do vocábulo árabe tahona. De origem árabe é, também, o nosso topónimo Cadima que provém de qadimu, cadîma. Antigamente chamava-se cadima ao que era público: caminhos, estradas e cadimas às terras agora designadas maninhas.
Um étimo árabe muito curioso para nós é Jabolon (monte), donde provém o nosso Janvão e donde deriva também o nome comum jabali, que deu na língua portuguesa javali, animal antigamente mais conhecido nas Mós pelo nome de porco-montês.
Mas a maioria dos nomes geográficos das Mós foram sendo formados com os recursos da nossa própria língua, descrevendo, sobretudo, acidentes geográficos, quase sempre relacionados, como ficou dito, com os rosários de montes que encaixam a povoação e, duma maneira geral, todo o seu termo: montes, vales, portelas, etc. Designações que ocupando grande parte da nomenclatura toponímica das Mós, derivam, algumas delas, de antiquíssimos arcaísmos. Lembro aqui do topónimo Selada que vem do arcaísmo Sellada. Olhando atentamente a cordilheira de montes que termina no Alto da Selada verificamos que a respectiva lombada, muito empinada, chega àquele ponto e quebra, formando um escalão. Este sítio mais baixo do monte é atravessado pelo caminho estreito e ziguezagueante, por onde se passa de um para o outro lado do monte. E porque se apresenta como uma depressão oblongada, faz lembrar a curvatura duma gigantesca sela. E desta parecença derivará o topónimo.
Para além da correnteza de montes que incorpora o Alto da Selada outros montes há que, encaixando a povoação, estão seperados por vales. E quando estes se apresentam como sítios de passagem (mais ou menos estreita) entre dois montes, são designados portelas, sendo a mais conhecida a Portela, situada entre os montes de Santa Bárbara e da Pombeira. Sobranceira ao Vale de Trigo, foi em tempos (não muito distantes) ponto de passagem indispensável para quem se dirigia para a Estação de Freixo, para o Rio Douro e para outros destinos.
Mas além desta, na Toponímia das Mós existem mais de uma dúzia de topónimos que integram o elemento Portela que, em alguns casos, não representa mais do que um desfiladeiro. Portela tem o Lameirão que, etimologicamente, quer dizer grande lameiro. Nunca por lá vi nenhum lamaçal, mas sim frondosos olivais, amendoais, hortas e alguns pastos para o gado, durante uma parte do ano. Riqueza económica, botânica e ambiental que a acção negligente ou mesmo criminosa de alguns acabou por destruir.
Já vimos que Penafria deriva de penha ou penedo; da fenda duma fraga donde brote água, deriva o nosso topónimo Gricha, apresentado em raros dicionários como regionalismo.
Barreira significará encosta, outeiro, cabeço. Cabeço, por seu turno, pertence ao número de vocábulos que se relacionam com o corpo humano, adquirindo uma significação geográfica (metafórica), como é o caso do Cabeço da Negra.

(1) MACHADO, José Pedro, Origens do Português, vide pág. 115 e seguintes.

TOPONÍMIA DAS MÓS (continuação)

Etimologicamente o termo Toponímia significa o estudo histórico e linguístico da origem e da evolução dos nomes próprios dos diversos lugares. Quando este estudo é destinado a uma aldeia rural e recôndita como a nossa, no sistema de referenciação geográfica predominam topónimos com origem em substantivos comuns ou nomenclaturas de disciplinas como a Geografia Física (como já ficou dito), a Botânica, a Zoologia, a Geologia, etc. Mas também temos um pequeno número de topónimos que para além do seu significado geográfico, testemunham a evolução “urbanística” da povoação, ou revelam outros factos sociais e históricos da vida comunitária mosense dignos de registo. É de alguns deles que vou começar por me ocupar.

Vejamos o caso do Cabo d`Aldeia (Cabo vem do latim vulgar capu e Aldeia do árabe aD-Dai`â (1)). Como é sabido, actualmente, Cimo do Povo e Fundo do Povo designam duas extremidades do casario das Mós, mas durante séculos, o Cabo d`Aldeia era o fundo, uma extremidade da povoação. Os factos sociais e históricos que progressivamente acabaram por colocar este sítio num ponto sensivelmente equidistante do Cimo e do Fundo do Povo ficaram explicitados no meu trabalho “Um Motim nas Mós”.
Como também ali ficou escrito, durante muitos séculos, o casario mosense esteve concentrado em redor da igreja “do Apóstolo S. Pedro”, que a partir de 1836 foi transformado no actual cemitério. Este antigo aglomerado ficou para sempre designado por Castelo (derivado do latim Castellu), topónimo que actualmente dá nome à rua que atravessa a Lajinha (diminutivo de laja, laje), – vizinha do sítio onde foi edificada a sede da nossa briosa Associação e do futuro “Centro de Dia” – nome da rua que abrange também o velho recinto do Tronco, onde antigamente eram ferrados os animais.
A pouco mais de 100 metros do Tronco fica o Terreiro (do latim terrarius), espaço largo e plano, situado no centro da povoação e que ao longo dos séculos teve as mais diversas utilizações sociais, avultando o seu incomparável e secular préstimo como local de convívio quase permanente de mosenses e de visitantes do sexo masculino, e também um espaço ao ar livre e arborizado, onde sempre tiveram lugar não só a maioria dos episódios dos arraiais da Festa anual, mas também a realização de outros incontáveis folguedos.
Sobranceira ao Terreiro e ao Cabo d`Aldeia fica a Rua do Forno (do latim furnu ou fornu), cuja importância histórica reside no facto de ali permanecer (restaurado) o Forno Comunitário e de, mais adiante, permanecer erguida (e também restaurada) a casa particular onde a professora D. Maria do Carmo Almeida chegou a dar aulas a várias dezenas de alunos em cada ano lecctivo, nos anos do histórico crescimento demográfico das Mós, ou seja, entre 1935 e 1944. Foram nove penosos anos em que o Salazarismo manteve encerrada a agora designada “Escola Velha”, depois de ter sido preso um professor por motivos políticos.
Escola Velha designa o sítio onde foi erguida, nos anos 70 do século XIX, a primeira escola masculina das Mós. Mas ali deveriam ser afixadas duas placas (no largo e na rua) onde figurasse o nome do Professor José António Saraiva, homenageando-se assim a memória de alguém que sendo o primeiro professor que ali deu aulas, foi, além de insigne pedagogo, um exemplar cidadão e, durante décadas, membro da Junta de Freguesia. Seria um acto de gratidão semelhante ao que aconteceu com a memória do sempre lembrado Dr. Castelinho.
A Escola Nova (agora também desactivada) foi construída no fim da primeira metade do século XX, num terreno situado para além da capela de Santo António e do Fundo do Povo e mais distante, ainda, ficariam as amplas instalações da Junta de Freguesia das Mós, construídas depois do 25 de Abril. Estas modernas construções valorizaram muito a Rua de Santo António, embora antes delas fosse já um dos sítios mais significativos da povoação, por nela ter sido edificada há séculos a capela de Santo António. Sobre o étimo do respectivo topónimo, julgo que será interessante referir que quando Fernando Martim de Bulhões resolveu tornar-se frade franciscano (talvez em 1220), adoptando, em Itália, o nome de religião Anthonii, ainda não existia na antroponímia portuguesa o nome António.
Por cima da Rua do Forno fica a Rua do Chalé, onde está situado um edifício brasonado cuja “história” ficou amplamente contada na minha crónica “O Antigo Chalé das Mós ou Casa do Campinhos”.
Além de uma dezena de topónimos “urbanos” com algum interesse social e histórico, na toponímia rústica mosense existem cinco dos chamados topónimos arqueológicos, a saber: Aldeia Velha, Cruzinha, Campanas, Castelo Velho e Necreal com raiz no grego nekró (2) e relativo ao sítio onde eram sepultados cadáveres, antes da existência da igreja do “Apóstolo S. Pedro”.
Em alguns destes sítios foram referenciados vestígios arqueológicos, outros embora com poucos ou nenhuns destes vestígios, são igualmente considerados topónimos arqueológicos.

Prosseguindo um propósito começado no escrito agora continuado, vou apresentar mais alguns topónimos fundamentados em patronímicos:
Janalves – tem origem na contracção de Janes com o apelido Alves (Janes ou Jannes é uma alteração de Joannes> Johanes, ou seja: Joannes> Joanes> Janes> Jane + Alves = Janalves);
Aquele elemento antroponímico entra também na formação do nosso topónimo Gonçalo Joanes, (nome pelo qual ficou conhecido o viaduto ferroviário que atravessa a “foz” do Pigarro);
O mesmo prefixo (abreviado) integra também o topónimo Jampires, só que neste caso a contracção é com Pires
Passemos a nomes geográficos que têm a sua proveniência nas configurações dos terrenos, nos acidentes geográficos ou na natureza dos solos:
Atalho – antes de transformado em bairro, era um sítio ladeirento e pedregoso que se erguia a partir de um caminho (agora um troço de estrada) que ali fazia uma curva larga para tomar o rumo Sul. O topónimo deriva de um carreiro enviesado que atravessava a colina, permitindo aos andantes mais apressados encurtar a distância entre dois pontos do referido caminho;
Colado – passagem larga entre montes e outeiros;
Costa – rua ladeirenta das Mós e que (tal Cabeço) pertence ao número de vocábulos metaforicamente relacionados com o corpo humano, com uma significação semelhante a encosta;
Portelinha – diminutivo toponímico de Portela que, por sua vez, deriva do latim portella;
Porto – este topónimo mosense significa “porta de entrada”, vau de um ribeiro, onde se passava a pé, ou a cavalo numa besta;
Torrão – por terrão, terreno arável.

Topónimos botânicos com formação adjectival:
Carrascal corresponde a mata de carrascos ou carrasqueiras, sendo o substantivo comum carrasco “um vocábulo pré-romano, talvez de origem ibérica” (4);
Sobradais – o mesmo que sobrais plural de sobral (de sobro+sufixo al) o mesmo que sobreiral que designam um conjunto de sobros ou sobreiros do latim suber, eris.
Carvalhal – do latim Carbaliaes, carva
Cardeira e Cardal – deriva de cardo do latim carduus ou cardus
Fieital – sítio onde crescem fieitos ou fetos de várias espécies.
Zambulheira (= Zambujeira), derivado do substantivo comum zambujeiro, espécie de oliveira brava.

Zoónimos ou nomes geográficos relacionados com animais temos, entre outros:
Pintainho, Vale da Cabra (do latim Capra); Corujeiras – sítio penhascoso com pinheiros onde, certamente, sempre se acoitaram corujas.

No Fundo do Povo temos o topónimo Curral, porque se trata dum recinto onde, em tempos passados, se juntava e recolhia o gado. Curral tem como étimo remoto o latim currale.

A maioria dos topónimos referentes à Geologia estão relacionados com a actividade mineira, mormente ligada à extracção de volframites e da scheelite, como são: os Filões (que incluía outros no sítio da Gricha); menos conhecidos são os topónimos Minas, Portela das Minas; Chão Grande, etc.

No nosso património não temos pelourinho, nem cruzeiros, nem outros monumentos para figurarem na nossa Toponímia. Mesmo as Alminhas, no caminho do Colado, no lugar dum painel representando as almas dos mortos penando no Purgatório, está uma singela cruz pintada numa lajinha colocada no fundo dum nicho embutido numa tosca parede de xisto. O nosso motivo de orgulho está nos cenários de presépio que encaixam o casario e foi também, durante mais de um século, o donairoso Olmo do Terreiro, verdadeiro ex-libris das Mós, que ao secar nos deixou a chorar, como se um parente muito próximo nos morrera.
E por agora termino, em 21 de Outubro de 2007.

(1)) José Pedro Machado, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, 2ª edição, 1967, Volume I, pág. 184
(2) Idem, idem, idem, Volume III, pág 1652,
(3) Fr. Joaquim de Santa Rosa de Viterbo, Elucidário de Palavras Antigas…, Vol I, pág. 88.
(4) José Pedro Machado, Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, II volume, pág. 1025

3 - O ANTIGO CHALÉ DAS MÓS OU CASA DO CAMPINHOS

José Gomes Quadrado

Subsiste na toponímia urbana da povoação a Rua do Chalé, por ali, na área da Portelinha, ter sido erguido o único edifício brasonado da freguesia. Constituído por dois pisos, apresenta os vãos em arco abatido com molduras de cantaria simples e os pilares incorporados na parede (como o que se vê figura) tal como a cornija, são igualmente de cantaria. Teria sido mandado construir, no último quartel do século XVIII, por um grande proprietário não residente nas Mós e, por isto mesmo, passou a ser nomeado “chalé”, termo derivado do francês “chalet” que, a partir de finais daquele século, designava edifício chique, destinado à residência temporária ou de veraneio de gente rica. Este velho Chalé terá servido para alojar várias gerações de abastados proprietários e respectivas comitivas, que viriam algumas vezes às Mós por motivos relacionados com a administração das muitas propriedades rústicas que possuíam, não só no termo desta mas também nos de freguesias vizinhas; noutras ocasiões, certamente, viriam instalar-se aqui com as respectivas famílias e, quiçá, com alguns convidados, para usufruírem da beleza e da quietude da Natureza, bem como da paz que sempre reinou nesta povoação.
Fosse qual fosse a sua utilização em tempos idos, a maior dúvida que sobre ele mantenho, desde os meus tempos de adolescente, resume-se na seguinte questão: quem terá sido o opulento proprietário que mandou construir esta moradia apalaçada, maior e tão diferente das outras casas das Mós?
O eminente historiador regional (e não só), Dr. João Albino Pinto Ferreira, limita-se a chamar-lhe “Casa do Campos ou Campinhos”. Depois, uma fonte enganosa e não identificada, levou o meu saudoso Amigo Dr. Castelinho a inferir que a “Casa do Campos ”também era conhecida por “Casa Asseca” “por ter sido o Visconde de Asseca o seu primitivo proprietário...”. O devotado empenho em exaltar os valores da sua amada terra, sempre presente na Monografia que nos legou, impediu-o de analisar com espírito crítico se esta era, de facto, uma fonte fidedigna E a sua bem intencionada convicção levou-o a acrescentar: “Este antigo solar de fidalgos pertenceu ao Visconde de Asseca descendente de Salvador Correia de Sá e Benevides...”(1)
Comecemos por ter presente que se um qualquer dos Assecas alguma vez tivesse “assentado arraiais” na povoação das Mós, um tão inusitado acontecimento não teria passado despercebido ao bem informado cónego D. Joaquim de Azevedo que, indubitavelmente, não deixaria de o registar na sua “História Ecclesiastica da Cidade e Bispado de Lamego”, no capítulo: ”Pessoas illustres por nascimento”...
O certo é que, a partir de 1982, a 3ª edição daquela Monografia passou a ser a fonte onde, directa ou indirectamente, têm vindo a beber quase todos os que pretendem identificar este apalaçado edifício. Com efeito, depois de autores de livros com maior ou menor pendor roteirista, vieram também na sua peugada “cibernautas” reproduzir aquele engano. Assim, consultando a Internet, pude ver num “sítio” uma cópia da fotografia do brasão que sempre adornou o referido edifício, logo seguida deste comentário: “Este antigo solar, também conhecido por Casa do Campos, deverá ter pertencido ao Visconde de Asseca”. E noutro “sítio“, o antigo Chalé aparece identificado como: “uma casa apalaçada, com brasão, conhecido (sic) por Solar dos Assecas”.
Como não cultivo a arte de fabular, sirvo-me de insofismáveis argumentos para continuar a demonstrar que estamos, efectivamente, perante equívoco. Começo por comparar este que prevalece, intacto, na fachada do antigo Chalé das Mós com o brasão que podemos observar no frontispício da “Casa Grande” de Freixo de Numão, fazendo acompanhar a comparação com os comentários de quem tem competência para fazer “falar” as pedras de armas: o já referido historiador Dr. J. A. Pinto Ferreira. E só depois apresento o brasão de armas dos viscondes da Asseca, cuja leitura servirá como prova conclusiva daquele mal-entendido.
Este ilustre freixiense, numa das páginas do livro abaixo referido, apresenta a estampa do brasão de armas do Chalé e na sequente “lição heráldica”, começa por fazer referência ao granito de que é feita a coroa e o calcário que serviu para esculpir a pedra de armas; em seguida, diz que o brasão remonta à “época do Séc. XVIII”, ou seja, ao mesmo século da construção do edifício. Depois, na estudada “leitura” são relacionados os respectivos 4 “quartéis” (ou divisões) com outros tantos apelidos: ”I – Sousas de Arronches (incompleto); II – Vasconcelos; III – Moutinho; IV – Seixas.” Por fim, vem referido o “timbre” (as peças que figuram junto à coroa) :”Torre ou Castelo dos Sousas, e o Leão correspondente aos Vasconcelos.” (2)

Observemos, agora, o brasão de armas do solar barroco de Freixo de Numão e a leitura que dele faz Pinto Ferreira:
“Localização: Casa Grande – Freixo de Numão.
Época: Séc. XVIII.
Lição heráldica.
Classificação: Família.
Composição: Esquartelada.
Leitura: Sousa (de Arronches), Vasconcelos, Moutinho, Amaral”.
Nota: Contra o costume nacional apresenta dois timbres (do 1º e 2º quartel), assentes no bordo superior do escudo. Armas rematadas por uma coroa de nobreza”. (3)

Para além de outras semelhanças, constatamos que três dos apelidos são comuns aos dois brasões. Outra curiosa coincidência, reside no facto do desembargador José Ignácio Pais Pinto de Sousa e Vasconcelos (1767 – 1831) ter sido, simultaneamente, dono e “senhor da Casa Grande” de Freixo de Numão e um grande (porventura o maior) proprietário nas Mós.(4) Em contrapartida, não só nunca se ouviu falar de uma única propriedade rústica que tivesse sido pertença dos viscondes de Asseca, como também não se vislumbra a mínima similitude do seu com o brasão do Chalé das Mós, como veremos a seguir.
O primeiro visconde de Asseca, Martim Corrêa de Sá, viveu entre 1639 e 1678 e era, efectivamente, filho do celebrado herói Salvador Correia de Sá e Benevides, o restaurador de Angola, e de D. Catarina Velasco (filha dum vice-rei do Peru). Entre 1779 e 1817, período no princípio do qual terão sido construídos os dois solares, era 5º visconde de Asseca, Salvador Correia de Sá e Benevides Velasco.
A ascendência deste e dos restantes titulares dos Assecas fica perfeitamente demonstrada com a competente leitura do respectivo brasão, Com efeito, através dela, ficamos a saber que os seus 4 “quartéis de armas” estão relacionados com os apelidos daqueles seus antepassados seiscentistas: no primeiro quartel, estão as armas dos Correias; no segundo, as dos Sás; no enxadrezado inferior, as armas dos Velascos e no quartel que apresenta o “campo de prata” com um leão, figuram as armas dos Benevides.”(5).
Com esta comparação fica confirmado que, ao contrário daquela, nenhuma similitude existe entre este e o brasão existente no frontispício do Chalé das Mós.
Antes desta “acareação” já sabia que o 5º visconde de Asseca, tal como os titulares seus parentes, todos herdaram uma riqueza fabulosa no Brasil; sabia que eram riquíssimos, apesar de Salvador Correia de Sá e sua mulher terem perdido os avultados bens que possuíam no Peru e em Castela, quando este herói participou na Restauração da independência nacional. Aquele, além de 5º visconde era, ainda, par do reino por direito hereditário, e como tal, viveu sempre próximo da Corte: primeiro, em Lisboa, onde, também, administrava as muitas propriedades que tinha neste e no distrito de Santarém; depois, no Brasil, administrando a grande riqueza que lá tinha herdado E sabendo tudo isto, cedo me convenci que jamais qualquer um dos sucessivos viscondes de Asseca terá ouvido falar da nossa recôndita aldeia...
Desfeito o equívoco, fica ainda por saber quem mandou construir o brasonado edifício das Mós. Penso que o falecido Dr. J. A. Pinto Ferreira, com quem algumas vezes conversei sabre assuntos ligados à Toponímia, jamais explicitou o nome de quem mandou construir a “Casa Grande” da sua terra natal. E sendo assim, quem sou eu para vir aqui identificar o primeiro proprietário do antigo Chalé das Mós?
Não me atrevo a nomeá-lo, embora esteja convencido de possuir alguns indícios...
Mas vamos a factos.
Na segunda metade do século XIX, a gente povoação chamava-lhe Casa do Campinhos... Porquê?
Pinto Ferreira e outros autores deixaram-nos a opinião segundo a qual ela terá sido pertença do riquíssimo 1º Barão de Vila Nova de Foz Côa, Francisco António de Campos. Mas se assim fosse, tratando-se duma personalidade credenciada com títulos nobiliárquicos (não só de barão mas também de visconde (6) ),, o mais lógico seria que o edifício passasse a chamar-se, Chalé ou Solar do Visconde de Foz Côa...
Mas não!
Sei de fonte segura, que há 120 anos, o edifício continuava a ser conhecido por Casa do Campinhos. Esta fonte chamava-se Maria Joaquina Ferreira, a minha queridíssima avó paterna, nascida em 1877, que entre muitas outras narrações, me deu notícia dum acontecimento passado na sua meninice, que eu resumiria assim: num dos salões do grande edifício teve lugar um baile que terminou com a derrocada do sobrado; daí a pouco, toda a povoação entrou em alvoroço porque uma rapariga (com algum atraso mental) “correu” as ruas da aldeia, clamando: - “Ai que desgraça tão grande!!! Lá caíram na casa do Campinhos!!!”
A atribuição popular do diminutivo “Campinhos” mais do que referente a uma só pessoa, procuraria personificar um “clã”, abrangendo vários agregados familiares de uma conhecida linhagem da muito ramificada família dos Campos ou Campos Henriques. Apesar de constituído por membros dispersos por localidades tão diferentes como, Foz Côa, Lisboa, Porto, etc., todos observavam entre si a mais estreita solidariedade: E como qualquer verdadeiro clã, tinha um chefe hereditário e este só podia ser o já referido Barão e Visconde. E por isso, todos os restantes elementos seguiam as suas directivas.
Esta obediência e a referida firme mutualidade de interesses e deveres, teve custos muito pesados para a generalidade das famílias deste “clã”, particularmente, para aquelas que continuaram a residir em Foz Côa até finais de Dezembro de 1846. Isto porque todos os seus elementos (activistas ou não) estiveram expostos às investidas das “milícias cartistas”, porque, além de irmãos e familiares, defendiam as ideias “setembristas” do Barão e Visconde de Vila Nova de Foz Côa.
A mais terrifica das revindictas chegou depois dos irmãos Marçais e seus sequazes terem atribuído àqueles e a outras personagens a ideia de mandar incendiar, por vingança, a casa de habitação com todo o seu espólio, bem como, colheitas, gado, etc., causando grandes prejuízos ao clã dos Marçais. E a 24 de Dezembro de 1846, o designado “Batalhão de Foz Côa”, convertido em “Quadrilha dos Marçais”, chegou à Vila para levar a cabo uma violenta acção punitiva “contra pessoas e bens da gente mais grada da vila e do seu termo, provocando um êxodo de noventa e nove famílias”,(7) entre as quais as dos três irmãos do Visconde, Joaquim, José e Manuel de Campos Henriques e outra gente mais ou menos rica, como a: dos Correias Cavalheiros, dos Seixas, dos Almeidas, dos Margaridos, dos Navarros, etc. Todas elas viram as suas valiosas propriedades urbanas e rústicas assaltadas e/ou incendiadas. Ainda assim, mais sofreram as que tiveram familiares vítimas de espancamentos e até de assassínios. Tudo se passou, intermitentemente, ao longo de algumas décadas, “num tempo em que Foz Côa se transformou numa terra de perseguidores e de perseguidos”, como escreveu o Dr. Sousa Costa.
A ferocidade que então se desenvolveu nesta Vila, viria a afectar, também, várias freguesias doutros concelhos, algumas com grande crueldade, como aconteceu com Santa Comba, então integrada no concelho de Marialva e com menor gravidade, algumas freguesias ao então concelho de Freixo de Numão, que incluía a das Mós que, felizmente, acabou por ser poupada a esta terrífica convulsão política e social.
A história local regista a morte de um único mosense, o moleiro e barqueiro José Polido, que actuava numa azenha da margem esquerda do rio Douro e na barca que transportava quem transitava do e para o termo da Lousa. Apontado como conivente na emboscada montada no sítio do Zambujal (Lousa) que levou ao assassínio do chefe da “quadrilha”, António Marçal, (quando se dirigia para a sua quinta do Farfão), José Polido foi depois fuzilado, no seu posto de trabalho, por facínoras pertencentes à “Quadrilha dos Marçais”.
Os inapaziguáveis excessos cometidos contra algumas das mais importantes propriedades, fez com que a maioria dos mais abastados proprietários fozcoenses viessem a fixar residência em terras tão diversas, como: Moncorvo, Freixo de Numão, S. João da Pesqueira, Pinhel e, sobretudo, no Porto.
Nestes tão conturbados tempos, o facto das Mós aparecer como um local aprazível graças à preciosa paz que então aqui reinava (e não só), fez com que alguns elementos de referidas famílias aqui viessem investir, comprando residência fixa e propriedades rústicas, como aconteceu com elementos da família Correias Cavalheiros, outros uma residência temporária, e entre estes avulta o exemplo do “clã” Campos ou Campos Henriques que resolveu comprar o Chalé das Mós, para lhes servir moradia de veraneio e/ou, talvez, de residência estratégica. E se, eventualmente, foi o 1º Barão e 1º Visconde de Foz Côa quem concretizou a transacção, isto talvez tenha ver com o facto de ele ter o estatuto de chefe do “clã”, herdado de seu pai Luís de Campos Henriques, o “2º.Senhor de Campos”, de Vila Nova de Foz Côa. E a deferente designação “Casa do Campinhos”: não será ela um derivado deste estatuto?
Responda quem souber...
Francisco António de Campos, 1º Barão e 1º Visconde de Vila Nova da Foz Côa, viveu durante mais de 50 anos em Lisboa e aqui faleceu, viúvo, em 1873. E porque não teve filhos, deixou a sua muito avultada fortuna a seus sobrinhos: Dr. José Caetano de Campos e Dr. Joaquim de Campos Henriques, ambos magistrados, chegando a conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça. E tal como este seu tio, mesmo depois de reformados, continuaram a residir na capital e aqui vieram a falecer.
Depois, herdeiros de gerações seguintes acabaram por dividir o grande edifício em partes, para assim poder ser adquirido por várias famílias mosenses que lá residiram e/ou residem, a saber: de António Gaspar, de Joaquim Moutinho e um ramo da família Barandas.

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
(1)- Joaquim A. Castelinho, MONOGRAFIA HIRTÓRICA DE MÓS DO DOURO, ps. 114 e 115. Esta infundada informação só apareceu na 3ª e última edição.
(2)- João A. Pinto Ferreira, Antigo Concelho de Freixo de Numão – Memórias Paroquiais do Séc. XVIII, p. 173 .
(3) - J. A. Pinto Ferreira, FREIXO DE NUMÃO - Apontamentos, p.126.
(4)– António A. Rodrigues Trabulo e António Nascimento Sá Coixão, S. PEDRO DE FREIXO – RAÍZES E IDENTIDADE, p. 224.
(5) - Esteves Pereira e Guilherme Rodrigues, PORTUGAL – Dicionário Histórico, Geográfico, Biográfico e Heráldico, Volume I , p.794.
(6) – Idem, idem, idem... Volume VII, páginas 527 e 528.
(7) – Sousa Costa, Páginas de Sangue – Brandões, Marçais & Cª., 1º.volume, p. 200.

4 - UM MOTIM NAS MÓS

José Gomes Quadrado

O que mais contribui para que continue a escrever sobre o passado da nossa povoação reside no anseio de querer recuperar tradições, factos sociais e históricos, quando os presumo perdidos na memória colectiva da nossa gente. Isto aconteceu, por exemplo, com a “Lenda do Cabeço da Negra”, e o mesmo poderá passar-se com o conteúdo deste ou de outros escritos com origem na memorização da criança que viveu nas Mós, nos anos 40 e princípio do anos 50 do século passado. É, portanto, mais uma narrativa que resulta do esforço da vontade sobre a memória, complementado com a investigação documental possível, mormente quando menos que lembranças, só restam reminiscências.
Ao elaborar o “Bosquejo Histórico das Mós”, que me fora “encomendado” pelo nosso Presidente da Junta, vieram-me à ideia seguros indicadores da existência duma amotinação popular que terá acontecido nas Mós, provavelmente em Setembro de 1904, um acontecimento histórico que embora merecedor de relevo, ali não teve cabimento dados os parâmetros que condicionaram aquele trabalho. Agora, como acima prometi, é a memória daquele facto social e histórico que aqui procuro restaurar.
Quem entra na povoação pelo Castelo, através da estrada que vem de Santo Amaro, começa por encontrar os muros seculares do actual cemitério, que são o que resta das paredes da vetusta igreja paroquial, que antes de ser transformada exclusivamente em cemitério, a partir de 1836, era designada “igreja do Apóstolo S. Pedro”. Durante muitos e muitos séculos, foi nela que sucessivas gerações da população concentrada aquietou as almas cristianizadas, e as sedes dos corpos saciavam-nas na “água do Castelo”, oriunda duma nascente situada no ribeiro, muito próxima do casario medieval que se erguia para Norte, uma nascente que viria a ser denominada “Fonte da Nogueira”.
Com o decorrer dos séculos, sucessivas gerações foram deslocando a povoação para jusante, construindo as suas casas nos sítios onde o vale mais se alarga, nas faldas do rosário de montes e de colinas que encaixam o povoado, procurando a protecção contra os ventos dominantes do quadrante de norte. Por outro lado, a velha igreja paroquial teria ficado tão arruinada com os abalos do Terramoto de 1755, que o “Santíssimo Sacramento” passou para a capela da Senhora da Graça. E mesmo depois de reedificada a vetusta igreja, ali continuou, para maior comodidade dos sacerdotes e dos crentes, porque mesmo continuando a ser designada “Capela da Senhora de Graça e do Santíssimo Sacramento”, há muito ficara situada no meio da povoação, e em torno dela se concentrara a população, constituindo o núcleo central das Mós, tal como chegou aos nossos dias.
Simultaneamente com o referido aconchego, as sucessivas gerações de mosenses procuraram também residir nas proximidades doutras nascentes de água, designadamente: da Fonte do Barreiro, da Fonte do Valtrigo e até da nascente do Escorregadoiro. Mesmo insalubres, estas águas tinham diversas serventias: para a limpeza doméstica, para acudir aos incêndios, para regar, para o funcionamento dos lagares e dos alambiques, etc. Mas decorridas centenas e centenas de anos, a da Nogueira continuou a ser a principal fonte que fornecia água corrente aceitavelmente potável às várias gerações de mosenses até ao último quartel do século passado.
Num solo 100% xistoso e por isso muito permeável, esta mãe de água terá desempenhado um papel decisivo na implantação do povoado no Castelo (novo), e mais importante se tornaria com o progressivo crescimento da população residente, apesar de ter ficado cada vez mais distante do núcleo central da povoação. E quanto mais longe ficava, maior era o número de pessoas que ela abastecia: em finais da era medieval não chegavam a ser 50 as pessoas abastecidas(1); no fim da Idade Contemporânea (1894) fornecia água a 590 habitantes e em 1904, dessedentava mais de 600 moradores. Como já referi numa crónica anterior, a falta de alternativas a esta fonte pública, e o progressivo crescimento populacional, fizeram com que a gente das Mós tivesse na falta de água potável (e não só) um dos seus principais padecimentos.(2)
Para que o Cabo D`Aldeia “o deixasse de ser” para dar lugar ao Fundo do Povo, também contribuiu o pendor para avizinhar e depois arrotear os solos mais fundos, mais férteis e regáveis, existentes nas margens do ribeiro, para aí vicejarem as boas hortas e os bons pomares, onde sempre avultaram as melhores couves pencas, a boa laranja das Mós e outra fruta, constituindo inigualáveis regalos, sobretudo para os grandes proprietários, mormente para os não residentes.
Entre estes sobressaía, no início do século XX, o Dr. António Cândido Pires de Vasconcelos. Ele e uma sua irmã eram donos e senhores de muitas das melhores propriedades do termo das Mós, incluindo alguns dos mais fecundos pomares e hortas existentes nas margens do segmento superior do ribeiro. E um deles ficava situado nas proximidades da fonte pública da Nogueira, para o qual eram desviadas as águas sobrantes que corriam a “céu aberto”. Mas em 1904, o “Doutor Pires” (como era conhecido nas Mós) acabou por ir mais longe: pretendeu contestar o direito da povoação à “posse plena” das águas da Fonte, fruição que detinha desde tempos imemoriais, como julgo que deixei perceber. E em que termos procurou ele contestar este inalienável direito da população, ferindo o seu pundonor?
A resposta a esta questão e a dimensão dos atritos então existentes entre este grande proprietário e a Junta da Freguesia das Mós, presidida pelo Abade António Januário Mendes Vasconcelos, não aparecem explicitadas no relatório apresentado pelo vogal António Caetano Barandas, na reunião da Junta, realizada a 3 de Setembro de 1904 (3). O que ressalta neste registo, são palavras de indignação pela tentativa de atropelo ao direito da população, cometido por alguém, cujo nome é omitido.
Mais explícita foi a indignação dos populares que “saíram à rua”, entoando um cantar de revolta, cujos versos e música eu decorei, passados mais de 40 anos, porque os ouvi recordados por mosenses que, então, tinham mais de 50 anos de idade, e cantavam:

Já não há, não há!
Nem a pode haver
(Bis)
Água no Castelo, olaré!
Pró Doutor beber.
(Bis)

Viva a paródia!
Quer sim, quer não;
(Bis)
Vivam os das Mós, olaré!
E “ós” da Estação!
(Bis)

A ameaça de apropriação das águas da Fonte para regar a sua propriedade, que esteve na origem do Motim de 1904, provavelmente não passou dum pretexto do Dr. António Cândido Pires de Vasconcelos para abrir mais uma frente do confronto político que mantinha com autarcas eleitos pelo Partido Regenerador. Este carismático advogado freixiense era “a principal figura Republicana e Maçónica do concelho de Vila Nova de Foz Côa”(4). E como tal mantinha, entre outros, um conflito político “latente” com o Padre António Augusto Russo, pároco de Freixo de Numão e um pertinaz dirigente local do Partido Regenerador. Mas as investidas políticas contra estes e outros militantes regeneradores do concelho talvez se compreendam melhor se tivermos presente a conjuntura política nacional existente em 1904.
Foi um ano que correu muito mal para o governo Regenerador (formado em Fevereiro de 1903), porque o apoio aos deputados dissidentes franquistas alastrava em várias províncias e o entusiasmo dos republicanos crescia cada vez mais. Apoquentado por estes e outros deputados, Híntese Ribeiro, líder do partido e chefe do governo, propôs a dissolução da Câmara de Deputados em 20 de Abril de 1904, e dois meses depois, a 25 de Junho, realizaram-se novas eleições que voltaram a ser ganhas pelo Partido Regenerador. Mas João Franco foi eleito deputado e os republicanos viram crescer enormemente as suas votações, ganhando, até, em 12 freguesias de Lisboa. Mesmo assim, estes e os partidários do dissidente João Franco consideraram que os resultados eleitorais haviam sido viciados de “ todas as formas” com o intuito de iludir as grandes votações de franquistas e republicanos. Devido a tudo isto (e não só) a sanha dos dirigentes e militantes dos dois partidos subiu ao rubro, e o Dr. Pires Vasconcelos não foi uma excepção, como ficou demonstrado.
Para arredar deste poderoso homem a tentação de se apoderar das águas da Fonte da Nogueira, o referido vogal da Junta propôs que elas fossem canalizadas para “o Terreiro da Capela”, distante cerca 450 metros, calculando para a execução das obras um custo próximo dos 450 mil reis, verba demasiadamente elevada, em seu entender, para as posses da povoação, por isso sugeriu ao presidente da Junta a obtenção da necessária autorização para a “transferência da verba orçada de 70 mil reis” destinada à reparação da Fonte do Barreiro, para com ela poderem ter início as obras da referida canalização. A terminar, propôs a nomeação duma comissão destinada a criar condições que propiciassem o empreendimento, acabando por garantir que, uma vez concluídas as obras, a povoação nunca mais padeceria dos “rigores de sede”, porque o integral aproveitamento do “manancial de águas que andava transviado” traria sem dúvida, à povoação “uma perene fonte de descanso e de sossego”.(3) Que enganado estava o esforçado relator António Caetano Barandas!
Numa outra reunião, a Junta, depois de aprovar as propostas acima referidas, deliberou que: ninguém poderia fazer qualquer obra no ribeiro, sem a competente autorização da Junta de Freguesia, sob pena de “se proceder legalmente”; no ponto seguinte, manifesta a intenção de nomear a sugerida comissão com a incumbência acima referida, prometendo conceder-lhe os necessários poderes para desempenhar “cabalmente a missão” que lhe iria ser confiada. No fim da acta, foi declarado o propósito de pedir “a competente autorização” ao Governador do Distrito para possibilitar a transferência dos acima referidos 70 mil reis, para com eles custear os primeiros trabalhos da canalização.
Naquele tempo, a generalidade dos municípios e das juntas só podiam movimentar verbas públicas com autorização do representante do poder central, o Governador Civil do Distrito. Neste caso, o pedido de autorização seguiu em Setembro e no mês seguinte, o Governador do Distrito já era outro porque, entretanto, o governo do Partido Regenerador “caíra”, passando a governar o Partido Progressista, chefiado por José Luciano de Castro.
Por esta e por outras razões, a solicitada transferência nunca viria a efectivar-se, porque os 70 mil reis acabaram por ser aplicados na reparação da Fonte do Barreiro, em 1909. E as águas da Fonte de Nogueira só chegariam ao “Cano” no Largo do Terreiro, em 1912, quando o Dr. António Cândido Pires de Vasconcelos já havia atingido o cume da sua carreira política…
As obras de canalização completaram-se não à custa dos dinheiros públicos, mas graças aos mais de 400 mil reis, generosamente doados pelo Cidadão mosense, o mais benemérito de sempre: ANTÓNIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MENDES.
As iniciais ”A.A.O.M.” gravadas na cantaria cimeira do fontanário público e os dizeres da placa que ali se vê, atestam a gratidão de várias gerações de mosenses.


(1) Segundo o “Cadastro da População do Reino” de 1527, (ou seja, cerca de 40 anos depois da era medieval) a povoação era habitada por 52 moradores.

(2) Se algum dos meus pacientes leitores quiser fazer uma (pálida) ideia da dimensão do calvário da gente das Mós com a falta de água, poderá encontrar resposta no meu artigo “Atribulações da Gente das Mós”, publicada em 1968 em “O Fozcoense” e inserto no sítio dasmos.blogspot.com.

(3) Existem cópias das actas relativas a esta e à seguinte reunião da Junta de Freguesia, na”Monografia Histórica de Mós do Douro”, de Joaquim A Castelinho, edição de 1981, p. 195 e seguintes.

(4) A Primeira República no Concelho de Vila Nova de Foz Côa, António N. Sá Coixão e António A. Rodrigues Trabulo, edição C.M. de Foz Côa, 1993, página 70.

5 - O IMPACTO DO “MINÉRIO” NAS MÓS

José Gomes Quadrado
5.1 - A saga dos volframistas

«A 1 de Setembro de 1939, no dia em que teve inicio a terrífica 2ª Grande Guerra, o governo de Salazar emitiu uma declaração proclamando a “neutralidade portuguesa no conflito europeu”. A nossa situação geográfica, o rumo que Hitler acabou por imprimir às suas investidas (para Leste) e algumas afinidades ideológicas, permitiram a Salazar manter a proclamada neutralidade e desenvolver a estratégia que mais convinha à preservação do império colonial e mais favorecia o comércio externo português. Para atingir este objectivo viria a participar, progressivamente, na chamada “Guerra Económica”, sobretudo, a partir de meados de 1941, quando - com a invasão alemã na Rússia – um conjunto de produtos assumiu uma grande importância estratégica, com especial destaque para a exportação dos minérios do volfrâmio, que viria a funcionar como “faca de dois gumes”, já que foi assinando sucessivos acordos: quer com os ingleses, mantendo o País fiel à secular aliança com a Inglaterra; quer com os alemães, não só para manter a estratégia acima referida mas também porque esperava, então, uma vitória (mesmo que parcial) da Alemanha.
Sendo Portugal o maior extractor destes minérios na Europa, mais do que competitividade entre os beligerantes, estabeleceu-se uma agressiva emulação, desenvolvida pelas respectivas representações diplomáticas, através de agentes que agindo com maior ou menor secretismo, deram origem ao desenvolvimento do contrabando e à subida em espiral do preço dos dois minérios. O efeito desta alta na agricultura do Norte e Centro do País foi deixando o governo cada vez mais preocupado, motivo que o levou a regular e a controlar com maior firmeza o mercado, o que implicou o aumento da repressão, não só em relação aos contrabandistas mas também aos que extraíam os minérios sem licença.
Numa conjuntura em que 15 ou 20 gramas de “minério” passaram a render mais do que aquilo que se colhia nas magras courelas ou do que pagavam por um dia de jeira, a maioria dos camponeses das Mós virou volframista, mesmo correndo os riscos provocados por sucessivas surtidas da GNR, porque actuava sem a exigida licença. Para além de residentes, esta opção viria a ser tomada, também, por alguns mosenses ausentes há vários anos, chegando alguns a deixar o “colarinho branco” e tal como outros retornados (mormente do Porto), vieram para integrar parcerias que laboravam, sobretudo, no sítio sugestivamente designado FILÕES.
Este, como outros espaços mineiros, situa-se numa das lombas ondulantes que se erguem até ao termo de Freixo de Numão, parte das quais podem ser observadas do esplendoroso miradouro de Santa Bárbara. Vertentes muitas vezes percorridos por um dos meus informantes privilegiados, o amigo Rui Solteiro, que conhecendo como ninguém os espaços mineralíferos desactivados, ou seja, o que resta de galerias, trincheiras e poços, é de opinião que teriam sido os das Mós quem mais minérios extraiu “de todos os povos do nosso concelho”. Mas os condicionamentos impostos pelo orografia dissuasória, devidos ao volumoso Montargão (e não só) não permitiam que a nossa povoação tivesse acesso às principais estradas do concelho, e esta terá sido a razão suficiente para impedir que as grandes empresas mineiras se estabelecessem no termo das Mós, optando, antes, por se fixarem no de Freixo de Numão. Sendo assim, talvez só possamos afirmar que terá sido nas Mós onde, eventualmente, mais gente se ocupou na extracção de volframite e de scheelite por conta própria, incorporando diversos tipos de parcerias. Esta generalização ter-se-ia ficado a dever (entre outros eventuais factores) à existência no seu termo de duas linhas de água do tipo torrencial, os ribeiros das Mós e o de Valmampaz, praticamente secos durante grande parte do ano, e sobretudo aquele, que sempre foi um autêntico depósito sedimentar detrítico, constituindo uma sucessão de espaços onde a extracção de minérios era fácil. De tal maneira, que duas que duas jovens munidas de um pequeno sacho e de um alguidar de zinco, ganhavam o dia e ânimo, esgravatando areias e cascalhos, provenientes da secular erosão que as enxurradas, desde sempre, provocaram nas referidas e empinadas ladeiras que, longitudinalmente, se estendiam ao longo da margem esquerda do ribeiro, desde Sobradais até às proximidades da povoação. Parcerias como esta optavam pela chamada “forma de exploração à superfície”, esgravatando ou escavando onde melhor lhes parecia, actuando impelidos por palpites, desde que nas proximidades existisse água que propiciasse a lavagem dos minérios.
Para além da recolha proveniente de detritos, devidos ao fenómeno de aluvião, os grupos maiores e mais organizados actuavam em terrenos mineralíferos – mormente no já referido sitio dos “FILÕES” – munidos de ferramentas e equipamento, como: pás, picaretas, ferros pontiagudos, marras, guilhos, etc... Os montões de terra iam sendo despejados no “rolho”, para se proceder à “lavagem do minério”, utilizando enxada rasa “baixa”, de folha quase tão larga como o interior do “rolho”, onde ela funcionava num “vai e vem” para apurar os dois minérios mais pesados do que os restantes componentes dos detritos. Regra geral, a água não abundava, então tornava-se indispensável a proximidade de 2 poços contíguos: um a montante cuja água depois de passar pelo “rolho” entrava no outro, para voltar a ser revertida para o primeiro. Água sempre movimentada com a ajuda de um gravano. Esta tarefa viria a ser exemplarmente demonstrada pela Associação de Cultura e Recreio “As Mós”, no carro alegórico com que galhardamente participou no Desfile Etnográfico da Festa das Amendoeiras em Flor, no ano de 2004.
Os volframistas por conta própria actuavam sem o prévio conhecimento do valor económico de jazigos metalíferos e com um insuficiente conhecimento da arte de abrir galerias que, portanto, eram minadas sem o devido escoramento, dando azo a desmoronamentos, o mais trágico dos quais roubou a vida a dois volframistas dum grupo de mosenses que actuava nos Filões. E além deste desastre, mais um ou outro aconteceram, provocando fracturas, nomeadamente, de pernas.
Os minérios recolhidos em detritos, de pequenas dimensões, eram depois espalhados em pratos e escolhidos a dedo, separando a volframite de uma cor negra e brilhante da scheelite (“o minério branco”) de uma cor branca amarelada e que apesar de serem mais duros, densos e pesados do que os outros detritos, mesmo assim, era necessário retirar-lhes eventuais impurezas, para não se “vender gato por lebre”, como, por vezes, acontecia. Esta tarefa era normalmente desempenhada por mulheres.
As consequências sociais e urbanísticas desta saga serão assunto dum próximo artigo. »

5.2 - Consequências sociais e urbanísticas

Uma das primeiras e mais significativas consequências da “febre do minério” foi o aumento da população residente nas Mós. De 1930 a 1940, a população passara de 757 para 723 habitantes, ou seja, perdera 5,6% dos seus habitantes. Entre 1940 e 1944, o número de residentes terá crescido cerca de 40%, ultrapassando um total de mil habitantes. E digo terá, porque não conheço registo fidedigno deste histórico crescimento populacional, que se ficou a dever menos ao retorno de mosenses que se tornaram volframistas, mas sobretudo à fixação de várias dezenas de famílias oriundas de zonas mais populosas do Alto Douro, como a da Régua, a do Tua, e até uma numerosa família luso-espanhola aqui se fixou! Durante aqueles breves anos, os resultados da extracção e venda do “minério”, mais do que estancar a sangria demográfica, tiveram o condão de inverter o fenómeno migratório das Mós, já que de aldeia propensa a fornecer um número crescente de emigrantes, passou a ser “ponto de chegada” de imigrantes activos.
Tirante um caso ou outro, esta gente não veio à cata do “eldorado”, mas para suprir a falta de assalariados que então grassava na povoação, visto que (como referi na crónica anterior) a partir da altura em que 15 ou 20 gramas de “minério” passaram a render mais do que uma jeira, nenhum “jeireiro” mosense se prontificava a trabalhar por conta de outrem. Os imigrantes vieram então para serem recrutados por pequenas ou médias empresas mineiras e, sobretudo, para trabalharem na construção civil. Os poucos mosenses que se ocupavam nesta actividade funcionavam, quase sempre, como mestres carpinteiros ou pedreiros. E porque a procura era muita, mais do que operários, actuavam como pequenos empreiteiros, opinando e/ou concebendo, sobretudo os mais criativos e engenhosos, a melhor maneira de construir ou reconstruir as numerosas casas novas então erguidas.
Os extraordinários aumento e renovação do parque habitacional da aldeia representam o testemunho mais perene e significativo da repercussão que a extracção e venda da volframite e da cheelite tiveram nas Mós. Entre 1941 e 1943, não havia “loja”, casebre ou pardieiro que não estivesse habitado. E como sempre, os piores instalados eram os imigrantes, mas também havia mosenses a viverem em condições muito precárias: em casas ou casebres, muitas vezes alugados ou cedidos, quase sempre construídos por um só piso, alguns deles com chão lajeado ou mesmo de terra batida!
E foram muitos destes que vieram a promover a construção de residência própria, mormente, nos sítios do Pombal e do Atalho, onde, anteriormente, não existia uma só casa de habitação.
A arquitectura escolhida seguiu, regra geral, as técnicas tradicionais de construção, dando lugar a habitações verdadeiramente rurais e não imitações de casa exóticas como, mais tarde, aqui como em todo o mundo rural português viria a contecer. Foram construídas de acordo com características especificas, perfeitamente integradas na paisagem envolvente, obedecendo às condições geológicas, isto é, utilizando o xisto, o único tipo de pedra existente no termo das Mós.
Uma das alterações mais significativas então introduzidas na construção das novas casas com mais de um piso residiu, sobretudo, nas escadas, que passaram a ser interiores e feitas de madeira; contrastando com as escaleiras exteriores feitas em pedra, que anteriormente prevaleciam, terminando num balcão (maior ou menor) e, por vezes, nos já muito raros alpendres. As casas com alpendre à entrada que já eram poucas, praticamente desapareceram com as inovações “arquitectónicas” trazidas da Europa pelos nossos emigrantes na segunda metade do século XX.
As casas baixas e casebres pertencentes a proprietários residentes, de uma maneira geral, foram demolidos e substituídos por casas de habitação construídas por: um pavimento térreo – servindo de corte (loja) de animais e/ou de arrumos de alfaias, batatas, cebolas, cereais, etc. – e por um ou dois pisos de sobrado para habitação.
Alguns dos imigrantes eram caiadores o que levou a um mais generalizado emprego da cal nas paredes exteriores de algumas das melhores casas então erguidas, mormente as construídas no designado “estilo colonial” e que mais tarde vieram a ser pintadas, como demonstra a casa que ilustra este texto. mesmo assim, a grande maioria das casas apresentavam as paredes de xisto sem reboco.
Comum a quase todas era o telhado de duas águas, com telhas vindas da Touça (salvo erro) e que assentavam numa trave e num ripado de madeira. Eram raras as que tinham janelas de vidro, sendo mais comum as de madeira, e nalguns casos existia, quando muito, um simples postigo, quase sempre com um único batente. É que entre os muitos mosenses que construíram ou reconstruíram as suas próprias habitações, gente havia a quem o dinheiro amealhado apenas permitiu erguer as paredes exteriores, telhar, assombrar e fixar a pedra da lareira, onde se cozinhava e toda a família se aquecia nas noites frias de Inverno. E porque (tal como as demais casas modestas) não tinham chaminés, o fumo da lareira escoava-se pelas telhas, por onde entravam também raios de luz solar. E erguendo o olhar, observava-se melhor a generalizada arquitectura das casas da povoação: maior altura no centro do que dos lados, devido à configuração da cobertura de telha vã.
E porque estas novas assoalhadas eram amplas e pouco mobiladas, tornavam-se propícias à realização de vários bailes aos domingos, levados a cabo por uma juventude residente, numerosa como nunca e amiga de folgar (como sempre) e que graças a tão propícias condições, cantou e dançou como nenhuma outra geração que a precedera. Até ao aparecimento e divulgação das grafonolas, os cantares tradicionais assumiram um papel determinante na realização dos seculares bailes de roda. Depois passou a dançar ao som de músicas revisteiras vindas do Porto e de Lisboa.
Viveram-se quatro anos de uma certa euforia, isto é, com entusiasmo ou sensação de bem-estar. Mas”foi sol de pouca dura”. Acabada a “Guerra Económica”, sucedeu-lhe o ano hidrológico (Outubro de 1944 a Setembro de 1945) mais seco do século XX. E a partir de então, as condições de vida agravaram-se de tal modo, que apesar do aparecimento de ingressos nas obras de construção do troço da Estrada Nacional N.º 324, entre Murça e a Estação de Freixo, a população residente passou a decrescer tão progressivamente, que chegou aos 714 habitantes registados em 1950!
Esmiuçado o que duma maneira geral já era sabido, resta dizer que não parece lícito que alguém “letrado” tenha publicamente omitido a existência de vestígios do impacto que a extracção dos minérios do volfrâmio deixou nas Mós.

6 - O NOSSO PATRIMÓNIO AGRO-ECOLÓGICO

1ª PARTE

José Gomes Quadrado

Com este trabalho pretendo adicionar mais informações às que deixei não só no “Bosquejo Histórico das Mós”, mas também noutros trabalhos, criteriosamente compilados na rubrica HISTÓRIA deste exemplar Blog. Venho acrescentar aqui algo que neles não teve cabimento, nomeadamente, contributos para o estudo da evolução da nossa agricultura ao longo de vários séculos.
Para não fazer deste um apontamento longo e fastidioso, resolvi dividi-lo em duas partes: a primeira, abrangendo (“grosso modo”) a possível informação relativa ao intervalo que decorre entre a era de quinhentos e meados do século XVIII; a segunda, compreende os 200 anos seguintes.
Nesta primeira parte, procuro demonstrar as causas naturais e os interesses poderosos que tolheram não só o desenvolvimento da vinha na nossa região, mas também o acesso ao comércio com o litoral e aos contributos socioculturais, necessários ao aperfeiçoamento e progressiva modernização da vida dos nossos antepassados, trazendo à colação o testemunho do vigário de “Asmos”, Domingos do Amaral Tavares, através de alguns itens do seu relatório, datado de 24 de Março de 1758, em resposta a quesitos ordenados pelo poderoso secretário de estado do Negócios do Reino, Sebastião José de Carvalho e Melo.

Até meados do século XVII, os nossos antepassados partilharam o mesmo património agro-ecológico com todas as populações que viviam no actualmente designado Alto Douro, ou seja, na faixa ribeirinha que se estende de Barqueiros (localidade situada a 10 km a jusante da Régua) até à Barca d’Alva, abrangendo vales, ribeiros e os cursos inferiores dos rios afluentes do Douro, em cujas margens avultavam solos que reflectiam a imagem do rio selvagem e indomável que este rio foi, até à construção das barragens hidroeléctricas. Com efeito, naqueles recuados tempos, em ambas as margens, tirante um ou outro casal ou quinta, tão raros como dispersos e incultos, vegetavam zimbros, carvalhos, sobreiros, carrascos e zambujeiros, no meio de matos espessos, com silvados e giestais impenetráveis, "onde se acoitavam o lobo, o javali e o gato montês.” A maior parte das terras aráveis estavam "a monte, medrava nelas o mato que só às vezes se queimava para semear centeio" ou se arrancava para “desafogar ou plantar o sumagre”. Segundo a mesma fonte, “raros eram os lavradores que colhiam 3 ou 4 pipas de vinho”. (1)
No que concerne à arboricultura, ela só tomou algum incremento a partir do século XVI, já que só nas duas últimas décadas deste século teria tido início a plantação mais intensiva da oliveira, o que não aconteceu com a amendoeira, embora a existência de ambas aqui fosse plurissecular, porque encontraram em diversas terras do nosso actual concelho os solos mais propícios. Aquela gerando o mais fino dos azeites e a amendoeira produzindo com muita regularidade um fruto considerado da melhor qualidade. Mesmo assim, a expansão do plantio desta árvore foi sendo retardado, porque os agricultores de outrora, os nossos antepassados, durante muito tempo, deram preferência à cultura do sumagre, nem sempre pelas melhores razões económicas.
Este, aquele e outro arvoredo (que oportunamente será referido) integram uma vegetação característica duma zona ecológica do tipo sub-mediterrâneo, devido á sua localização geográfica, ou seja, ao facto da referida faixa ribeirinha ficar encaixada entre dois sistemas: um, montanhoso e quase todo granítico e o outro, formado por rosários de montes xistosos e envolvido por aquele.
A rocha granítica do referido sistema montanhoso, em chegando ao Santuário de S. Salvador do Mundo desce e atravessava a garganta da Valeira, formando aqui uma terrífica catarata (com mais de sete metros de altura), ingressando, na margem direita, no flanco alcantilado e escarpado que, contornando uma volta do rio, se ergue a pique, atingindo várias centenas de metros de altitude até ao planalto de Ansiães.
Antes da sua demolição, aquele enorme fragão, o famigerado Cachão da Valeira, além de impedir a passagem dos peixes na desova, constituiu um grande obstáculo à circulação de pessoas e bens, por via fluvial, a única ligação directa não só entre o Douro Superior e a outra sub-região situada a jusante, mas também (e principalmente) com o litoral. Aquele afloramento granítico interpunha-se, a montante, entre as margens do rio e as terras aráveis, numa extensão que não ultrapassaria os 15 ou 16 km, mas que, além do mais, viria a revelar-se como um dos factores determinantes para que duas sub-regiões, embora com as mesmas aptidões produtivas, viessem a ter destinos diferentes.
A raiz desta diferença existia desde a formação da crosta terrestre, e consistia no seguinte: enquanto produtores e consumidores do “Baixo Corgo” e “Cima Corgo” (designações medievais), usufruindo da secular ligação ao litoral através da via fluvial, mantiveram o acesso à circulação de pessoas e bens e aos contributos necessários ao seu aperfeiçoamento e progressiva modernização; os que residiam a montante daquele obstáculo natural mantiveram-se fechadas ao litoral, sendo obrigados a virarem-se para o interior, ligados, sobretudo, às sedes das respectivas comarcas (Pinhel; Trancoso e Pesqueira) e secularmente condenados a uma forma de vida mais tradicional.
Esta diferença passaria a ter maior relevo a partir da segunda metade do século XVII, quando teve início o desenvolvimento da exportação do vinho generoso para a Grã-Bretanha. Naqueles dois troços (primeiro no “Baixo Corgo” e depois no “Cima Corgo”) a plantação de vinha começou a expandir-se, abrangendo as encostas ribeirinhas do Douro e dos cursos inferiores dos seus afluentes. O vinho cheiroso de “Riba do Doyro”, o nosso “vinho fino”, passou a ser designado “Port Wine” ou “Vinho do Porto”: data de 1678, o primeiro registo alfandegário de Vinho do Porto.
A crescente propensão para a monocultura da vinha foi tal que, segundo António Barreto, nas duas últimas décadas do século XVII, “a média anual de exportação de vinhos do Douro foi subindo de 500 ou 600 pipas para cerca de 7 000”!!! (2)
Toda esta enorme quantidade de vinho era transportada por barcos rabelos, tendo como destino os armazéns de Gaia, a barra do Douro e por fim a exportação. Portanto, quando em 1703, foi assinado com a Inglaterra o tratado de Methuen, já ali a expansão da viticultura tinha dado lugar a um efectivo regime de monocultura, o qual viria a ser reforçado entre 1730 e 1740.
Maior do que este crescimento foi a ganância de alguns grandes produtores que, no fim da primeira metade deste século, passaram a adulterar o vinho fino, e à degradação da qualidade viria a juntar-se a especulação dos exportadores ingleses, acontecimentos que conduziram ao descrédito do Vinho do Porto, a uma crise que atingiu o auge em 1754. A ela viria a atalhar o futuro Marquês de Pombal, criando, em 1756, a Companhia Geral de Agricultura das Vinhas do Alto Douro, tendo como principais accionistas os maiores produtores dos dois segmentos onde se verificava o exclusivismo da vinha, quase todos eles pertencentes à nobreza rural ou à grande burguesia urbana, mormente sedeadas no Porto. Os seus interesses e influências foram determinantes na concessão das “prerrogativas majestáticas” que o fundador atribuiu à Companhia. Alguns deles viriam, sucessivamente, a administrar e a fiscalizar o monopólio da produção e da venda dos vinhos para exportação.
Foram estes que decidiram, em 1757/58, que a demarcação da região, no sentido longitudinal, não iria além da interrupção provocada pelo Cachão da Valeira. Foi a primeira de sucessivas decisões que levariam à exclusão do Douro Superior, durante um século e meio, da Primeira Região Demarcada do Mundo.
No acima citado relatório do pároco das Mós não é referida esta discriminação, mas faz alusão aos danos provocados à economia local e regional o facto dos barcos não poderem carregar “mantimentos e fazendas que vem do Porto e juntamente levarem” das Mós “pão, vinho, azeite, sumagre e os mais Frutos que na dita cidade se gastam.” (3)
Como podemos verificar, a amêndoa não foi incluído neste rol de produtos eventualmente negociáveis, ao contrário do sempre referido sumagre. Ela só aparece referida na lista dos “Frutos da terra que os moradores recolhem em mayor abundância”, surgindo depois do centeio, da cevada, das lentilhas (garrobas) e antes dos figos e do cebolo. (4)
Mais adiante, o relatório do padre Tavares refere o que os mosenses semeavam nas olgas situadas nas margens do Douro: pão, linho, cânhamo, milho e botelhas. E acrescenta: “e nas testadas das ditas olgas há oliveiras, amendoeiras, figueiras, e algumas vinhas, e outras terras incultas de montados de gestas, peorneiras, rosmanos, quarrascos, sobreiros, e zambujos.” (5)
Apesar do rompimento do fragão do Cachão da Valeira ter terminado em 1792, e deste ponto ter ficado completamente navegável a partir de 1807, as sucessivas demarcações subsidiárias continuaram a deixar “fora de marcas” as vinhas situadas a montante do talvegue da Valeira.
Nesta altura, já há mais de meio século que a freguesia das Mós deixara de pertencer ao concelho medieval de Numão e passara a integrar o novo concelho de Freixo de Numão. Os maiores proprietários daqui eram os que detinham as melhores terras agrícolas das Mós. Depois, apesar deste concelho ter ficado fora das referidas linhas de demarcação, estes grandes proprietários “voltaram-se para o cultivo e intensificação da vinha.” (6). E porque os vinhos das Mós, tal como os de Custoias e os de Freixo, eram os melhores deste concelho e tão bons como os produzidos a jusante da Valeira, vieram a ser comprados pelos grandes vinicultores do “Douro vinícola”, armazenados em Gaia e depois exportados, pois estes grandes vinicultores não tinham dificuldades em conseguir as indispensáveis guias para os fazerem entrar no circuito legal de exportação. E os lucros assim obtidos concorreram decisivamente para que fossem construídos edifícios senhoriais; tais como: a Casa Grande, a Casa da Câmara, (entre outros) em Freixo e até o “Chalé” das Mós.

(1) O Douro nos Séculos XVII e XVIII, in Estudos Durienses, Imprensa do Douro, Régua, 1937, vide p.1 e 2.
(2) Douro, António Barreto, edições INAPA, 1993, vide pág. 91.
(3) Antigo Concelho de Freixo de Numão – Memórias Paroquiais do Séc. XVIII, Lisboa, 1974, vide pág. 175.
(4) Idem, idem, idem, vide pág. 170.
(5) Idem, idem, Idem, vide pág 176.
(6) Idem, idem, idem, vide pág. 8.

7 - O NOSSO ARADO RADIAL

José Gomes Quadrado

Dos três antigos tipos de instrumentos aratórios portugueses – radial, arado curvo ou de garganta e tipo quadrangular – o radial foi aquele que durante muitos e muitos séculos, resistindo às múltiplas vicissitudes da História, servira para os nossos avós, pais e alguns amigos (ainda felizmente vivos) lavrarem os solos delgados e secos da nossa região, onde tradicionalmente se semeava, sobretudo, o centeio. Quanto à sua origem, o notável antropólogo Professor Jorge Dias, no livro que me serve de referência, admite duas hipóteses: “ou chegou com as primeiras imigrações indo-europeias” ou “teve o seu berço” na Lusitânia (1). O que nem ele nem outros especialistas jamais aceitaram, é que alguns conceituados autores tenham desenvolvido o infundado costume de chamar “arados romanos” a todos os arados de pau, inclusivamente ao tipo de instrumento agrícola que foi usado não só no nosso concelho, mas também em toda uma grande área geográfica, abrangendo, mormente, os distritos de Bragança, de Vila Real e da Guarda (2), região geográfica e natural que o eminente geógrafo Orlando Ribeiro designou de “Norte Transmontano”. Esta e as outras duas regiões geográfico-naturais referidas neste trabalho, foram definidas segundo o critério implementado por Orlando Ribeiro e depois, curiosamente, Jorge Dias concluiu que a cada uma dessas três regiões correspondia um dos três tipos de arados por si classificados (Figura 1).

Figura 1 – Mapa das três regiões geográfico-naturais

Para muitos historiadores e antropólogos é ponto assente que a origem comum dos arados tenha sido o galho inteiriço de árvore que se arrastava no chão para rasgar a terra. Antes desta experiência, ao longo duma infinidade de séculos, as populações nómadas viveram “ao deus dará”, mudando constantemente de sítio, em busca de alimentos, abrigando-se onde calhava. Nesses recuados tempos, enquanto os homens se ocupavam na caça, na pesca, e até na pilhagem, as mulheres, além de cuidarem dos filhos, empregavam grande parte do seu tempo na colheita de frutos e de cereais silvestres nos sítios por onde passavam. Depois, verificando que as sementes caídas no chão (decorrido algum tempo) germinavam, passaram a fazer as suas sementeiras. Assim, enquanto os homens se mantinham naquelas ocupações, as mulheres, continuando a tratar dos filhos, teriam passado a esgravatar a terra com a ajuda de uns paus aguçados ou em forma de gancho (como se fossem sachos ou enxadas) para, a seguir, lançaram à terra remexida as sementes previamente seleccionadas. E este teria sido o começo da chamada “agricultura primitiva”.
Até há bem pouco tempo, considerava-se que o uso doméstico do trigo e da cevada tinha começado há 10 mil anos, no Médio Oriente. Mas segundo uma informação publicada na revista britânica “Nature”, uma equipa do Instituto Smithsonian de Washiington descobriu, na costa do mar da Galileia (Israel), um acampamento com 22 mil anos, onde encontrou (para além dum forno arcaico) “150 grãos de cereais selvagens” e junto deles, duas pedras que teriam sido usadas para moer os cereais silvestres. Com base nesta recentíssima descoberta, podemos concluir que o Homem já cozia pão 12 mil anos antes do aparecimento da acima referida agricultura primitiva.
E´ ponto assente que o Médio Oriente foi uma das regiões onde mais cedo teve lugar o sedentarismo, e com ele a necessidade do ser humano produzir uma parte importante da sua alimentação e vestuário, procedendo à progressiva domesticação e criação de animais, ao mesmo tempo que a muito pouco produtiva agricultura primitiva foi sendo substituída por uma outra, quando mulheres e homens, para além da pastorícia, assumiram, também, a função de agricultores, passando a arrastar pelo chão, não um simples galho, mas aquilo a que o poeta grego Hesíodo (séc. VIII a C.) chamou ”antonion aratron” (arado duma só peça) feito do tronco duma árvore ou duma pernada, previamente seleccionados, bifurcados em dois galhos, dos quais o mais forte e curto serviria de relha e o mais comprido e delgado de rabiça. E com este “avô dos arados” rasgavam a terra, abrindo sulcos prolongados onde lançavam as sementes. As primeiras experiências teriam sido feitas com os humanos (mulheres e/ou homens) a puxarem por ele, passando mais tarde essa árdua tarefa a pertencer a animais já domesticados, nomeadamente ao gado bovino, que teria sido a primeira espécie adaptada à função de animal de tracção. E teria sido deste modo que teve início a chamada agricultura arativa.
Com o decorrer dos séculos, partindo de experiências semelhantes a esta, foram sendo criados os diferentes tipos de instrumentos aratórios. Na opinião de alguns dos mais conceituados especialistas, o primeiro arado terá surgido, em plena Idade do Bronze, para lavrarem os fertilíssimos campos da Mesopotâmia. E o velho arado babilónico, depois de ter evoluído, ter-se-ia expandido pela bacia do Mediterrâneo, dando origem ao arado curvo ou de garganta, tipo que incluía o arado romano, e que se caracterizava, principalmente, por apresentar a rabiça e o temão bastante encurvados.
Depois dele, outros e variados arados foram produzidos em diferentes épocas e lugares, mais ou menos aperfeiçoados, conforme as diferentes paisagens naturais, as tradições e o progresso tecnológico, e assim foram sendo construídos os vários tipos de arado que chegaram ao século XX, morfologicamente puros ou tomando formas híbridas, quando postos directamente em confronto com outros tipos de arado mais ajustados às necessidades das respectivas regiões.
Através do “Quadro Tipológico dos Arados Portugueses” (Figura 2), podemos verificar que dois dos três principais tipos apresentam alguns modelos diferentes, para além de nos revelar alguns dos principais arados híbridos. No centro do quadro está o arado radial lusitano, que era o tipo que mais facilmente deixa perceber a procedência do referido “antonion aratron”, nomeadamente se levarmos em linha de conta que alguns exemplares do arado radial da era contemporânea eram construídos inteiramente de pau, incluindo a própria relha. Jorge Dias, no livro abaixo referido, informa ter ouvido falar da existência de arados com “relha de piorneira endurecida no fogo”, os quais, nas primeiros anos do século passado, ainda eram utilizados “em certas aldeias da serra de Montemuro” (3). O arado radial feito inteiramente de pau teria sido, de acordo com o parecer de Jorge Dias, o que primeiramente foi utilizado para lavrar no território que hoje constitui Portugal.
Onde ele começou a ser substituído pelo arado curvo ou de garganta foi no do território situado a Sul do rio Guadiana, dada a sua proximidade com a civilização tartéssica (desenvolvida entre os séculos VIII e V antes de Cristo) que o teria trazido ou pelo menos divulgado, para lavrar as magníficas terras andaluzas e por “contágio”, chegou ao agora denominado Algarve e a algumas regiões do Alentejo.
Portanto, quando os romanos se apossaram da parte ocidental da Península Ibérica encontraram o desconhecido arado radial lusitano (ao qual não consta que lhe tenham introduzido qualquer alteração) e numa região situada ao sul da Lusitânia, o referido arado do tipo mediterrânico, que alguns autores designam de “verdadeiro arado romano”, por ele ser do tipo semelhante ao que era conhecido e usado nas regiões mediterrânicas do império romano. Durante os séculos que durou o seu domínio, verificaram-se profundas alterações na situação económica da Lusitânia e, gradualmente, aconteceu a substituição do radial lusitano pelo arado de garganta, cuja difusão que se foi estendendo para norte, até atingir as proximidades da Serra da Estrela, na região “Sul” ou “Portugal Mediterrânico”, onde sempre foi semeado, principalmente, o trigo. E por aqui se manteve activo até ao século XX.

Figura 2 – Quadro tipológico dos arados portugueses

Historiadores e cientistas romanos deixaram-nos descrições sobre o tipo de arado quadrangular e processos de lavrar em uso na Gália, integrada, como é sabido, no vastíssimo império romano. Por exemplo, Plínio, o “Velho”, na sua “Historia Natural”, deixa-nos a informação de que nas terras fundas da Gália os pesados arados chegavam a ser puxados por duas ou três juntas de bois, atrelados em fila. Este cientista romano, menciona nesta volumosa obra que na “Ractia Gallia” (actual cantão suíço de Valais) surgiu o primeiro arado com duas rodas. Todavia, este tipo de arado não chegou cá através dos romanos, mas somente a partir do século V, com a implantação do reino suevo (com a capital em Braga). No território ocupado por este povo germânico, o arado radial lusitano que até então subsistira, viria a ser substituído, gradualmente, pelo arado quadrangular, muito mais pesado devido ao ferro que entrava na sua construção e propício à lavragem de terras fundas e humosas, como são as que avultam no designado “Norte Atlântico”, solos muito idênticos aos das regiões do norte e centro da Europa, donde estes e outros invasores germanos vieram.
Apesar da sua progressiva substituição pelos outros tipos de arados nestas duas regiões geográfico- naturais, uma das provas da importância nacional do arado radial lusitano no século XVI, está patenteada no facto de a sua figura aparecer gravada numa das páginas das Ordenações Manuelinas (4) (Figura 3).

Figura 3 - Arado radial lusitano no século XVI

Como se pode ver na cópia da cena agrária aqui reproduzida, um agricultor aparece a lavrar com um arado radial sem aivecas, segurando com a mão esquerda a rabiça e com a direita uma aguilhada que apresenta na extremidade inferior uma pazinha (“arrelhada”), destinada a limpar a relha e a parte inferior do dente.
A sua substituição pelo arado quadrangular no “Norte Atlântico” tornar-se-ía praticamente absoluta, depois da chegada do milho com mais de uma maçaroca (oriundo das Américas) e com a sua predominante sementeira nesta região. Apropriado para lavrar solos fundos, húmidos, humosos e de regiões planas, o “arado do milho” foi sendo vulgarizado na faixa litoral que vai do rio Minho até terras de Leiria (como Porto de Mós); a Leste vem ao longo da barreira de condensação formada por sucessivas serras, variando à medida que se foi estendendo para sul e em contacto com o ardo de garganta, tomando, então, formas cada vez mais híbridas, cruzamentos assinalados no ”Quadro Tipológico dos Arados Portugueses”.
Portanto, primeiro no Sul do nosso território, depois na região Noroeste e em regiões do litoral do centro do País, o mais leve, o mais singelo e o mais antigo dos arados portugueses foi sendo substituído por outros tipos de arado maiores, mais pesados e robustos, recobrindo a diversidade histórica, geográfico-ecológica e funcional. A sua subsistência ficou circunscrita à província de Trás-os-Montes e Alto Douro, ao “Nordeste Beirão” e até ao “Minho Serrano”.
Evidentemente que não há aqui a pretensão de caracterizar os vários arados radiais que foram usados em Portugal, mas, especialmente, aqueles que ainda conheci, na primavera da vida, em terras onde residi: nas Mós do concelho de Foz Côa e em Mogadouro (Figuras 4 e 5). Nestes dois concelhos o velho arado radial manteve--se funcional até meados do século XX, ainda que entre os arados predominantes nos dois concelhos existissem algumas diferenças morfológicas do esqueleto como, por exemplo: no formato da rabiça, na teiró (de madeira ou de ferro), nos tipos de relha, etc. Mas as principais variações residiam, acima de tudo, na terminologia.
Mas como arados radiais que eram, tinham como característica comum o facto das suas três peças estruturais: o dente (rasto ou rabela) o temão (timão ou vara) e a rabiça (ou mãoseira) irradiarem do mesmo sítio: a ponta traseira do dente.
O chamado conjunto dental (rabiça ou mãoseira e rasto ou rabela) nos arados radiais mais arcaicos, como aquele arado quinhentista, era feito dum só pau inteiro, mas os menos arcaicos, como nas Figuras 4 e 5 ficará demonstrado, tinham o referido conjunto dividido em duas peças de madeira distintas.
Este desdobramento ter-se-ia ficado a dever à dificuldade que consistia em conseguir os paus mais indicados para o seu fabrico. Mesmo quando o conjunto passou a ser fraccionado, era custoso encontrar madeira adequada, devido não só ao (mais ou menos) acentuado grau de curvatura existente na ligação rabiça-dente, mas também ao caprichoso formato da parte superior da rabiça: a mãoseira era tanto mais perfeita e graciosa, quanto o permitiam a peça ou peças de madeira e a habilidade artesanal do carpinteiro. Assim, se o lavrador não obrigava a árvore a crescer de maneira a fornecer os paus curvos necessários para se fazerem aquela ou estas peças do referido conjunto, tinha que recorrer a um madeireiro que lhe venderia paus que fora escolhendo ou preparando para essa finalidade, por um preço mais elevado do que outras peças de madeira comuns. Comparando as três figuras inseridas no texto, pode verificar-se quão variável era o grau de curvatura do conjunto dental.


Figura 4 – Arado Lusitano
Figura 5 – Arado de Mogadouro

Na extremidade inferior do dente eram fixadas dois tipos de relha: a relha de encaixe e a relha cravada. Aquela era feita de chapa de ferro, pesando cerca de 5 quilos e com 2 centímetros de espessura e apresentava uma concavidade (a gola) que permitia o seu perfeito encravamento na ponta do dente. A outra relha era mesmo cravada na extremidade do dente, rasto ou rabela.
Mais ou menos a meio da parte côncava do conjunto dental, junto ao ângulo formado pela rabiça e pelo dente, havia um orifício onde ficava fixado um pau de três ou quatro metros de comprimento, cerca de quinze centímetros de diâmetro, direito ou muito levemente encurvado: era o acima referido temão (timão ou vara), que na outra extremidade tinha dois furos, onde funcionava a chavelha (ou cavilha) destinada a prender o arado ao jugo duma junta de bovinos ou à canga duma parelha de bestas. Nos arados destinados a lavrar com um só dos animais de tracção, no designado arado radial “escachado”, a parte dianteira do temão era constituída por duas hastes encurvadas, quase sempre feitas de negrilho, unidas atrás para, tal como aquele, se fixaram na rabiça.
O temão ou vara era atravessado verticalmente pela teiró ou ateiró, que na maior parte dos casos era uma peça de madeira com cerca de 6 centímetros de largura, 2 de espessura, por 60 de comprimento (no arado de Mogadouro era de ferro) fortemente encravada na face inferior do dente, formando um ângulo mais ou menos agudo, já que a teiró podia ser regulada por meio de cunhas de base do temão e da chaveta (chave ou “têsa”), peça que servia para fixar ateiró de acordo com a profundidade da lavra pretendida. Assim, por exemplo, para lavrar os solos mais delgados como são os da maioria da nossa região, erguia-se e fixava-se o temão até no ponto mais alto da teiró; para lavrar terras fundas era retirada a cunha do temão e a chaveta (ou chave) da teiró; em seguida, fixava-se o temão no ponto mais baixo da teiró e colocava-se novamente a cunha na base do temão.
Alguns arados radiais tinham um mexilho ou pespeneiro de ferro, que atravessava a rabiça, no qual eram fixadas as aivecas ou orelheiras que acabavam presas na parte fundeira do dente, no interior da relha.
As madeiras mais utilizadas na construção deste nosso arado eram: as de freixo, as de negrilho, as de carvalho e até as de carrasco.
Algumas das diferenças morfológicas do esqueleto entre o arado da “Terra Quente” (a que pertence o nosso concelho) e o da “Terra Fria“ (que abrange as terras do Mogadouro), resultavam de diferenças geomorfológicas e das tradições de cada uma das regiões.
O radial lusitano mais simples e mais leve era o mais indicado, como atrás ficou dito, para rasgar solos magros, secos, ladeirentos e fragosos, solos que requeriam, portanto, lavras pouco fundas e atentas, de modo a evitar o choque com as fragas ou arrancar as raízes de árvores e de plantas perenes que evitam o deslizar de terras e a erosão excessiva. E sendo o mais manejável, era também o mais fácil de transportar nos caminhos ruins e ladeirentos da nossa montuosa região. A todas estas características favoráveis, juntava-se a barateza da sua construção e reparação e por isto era, também, o que melhor se ajustava às fracas posses dos nossos agricultores tradicionais. No planalto mirandês (onde ficam situadas as terras de Mogadouro) predominam os lameiros, os solos fundos, húmidos e planos. E se o arado radial também por aqui sobreviveu até meados do século passado, era porque para além de vantagens económicas e funcionais, o arado era um produto muito ligado às tradições regionais, e no entendimento das pessoas, a produtividade agrícola dependia, sobretudo, das condições naturais, que permitiam ou não o seu desenvolvimento.
Os nossos mais remotos antepassados viveram centenas de milhares de anos sem a preciosa ajuda desta alfaia agrícola, e desde o aparecimento do primeiro arado radial lusitano, teriam decorrido quantos? Dois escassos milénios?!
Depois de algumas (poucas) alterações morfológicas sobreviveu, apesar de confrontado com novidades trazidas por outros tipos de instrumentos de lavrar, mais sofisticados, mais pesados e mais caros. Há cerca de meio século, passou à situação de reforma. Pouco depois encontrei alguns abandonados no fundo dos quinteiros ou das curraladas; outros avistei encostados a velhas paredes de propriedades rústicas. E porque todos eles desapareceram, sou levado a concluir que apodrecidos ou não, acabaram transformados em cavacos e queimados.
Quem viu como se lavravam as nossas terras na primeira metade do século XX e não recorda o arado radial, comete o “pecado” da ingratidão! Em todo mundo civilizado há museus onde estão expostos os mais variados tipos de arado, dado que a sua utilização foi decisiva para a evolução económica e cultural da Humanidade. Como procurei demonstrar, a sua utilização para rasgar a terra, além de permitir sementeiras suficientes para alimentar as populações, permitiu também, a descoberta da tracção animal, tornando menos penoso o trabalho humano. E a terminar, acrescento: esta forma de tracção induziu ou levou à descoberta da roda que está na base de todo o desenvolvimento tecnológico da nossa civilização.

NOTAS
(1) Jorge Dias, Os Arados Portugueses, página 210.
(2) Soube que no concelho de Figueira de Castelo Rodrigo também se lavrava com arados de garganta, por influência dos vizinhos “espanholes”.
(3) Jorge Dias, Os Arados Portugueses, página 54
(4) J Leite de Vasconcelos, Boletim de Etnografia, nº2, pág. 16.


BIBLIOGRAFIA DE REFERÊNCIA

Jorge Dias, Os Arados Portugueses e as Suas Prováveis Origens, Porto, 1947.
Orlando Ribeiro, Portugal, O Mediterrâneo e o Atlântico, Coimbra, 1945.
Jorge Dias e Fernando Galhano, Atlas Etnológico de Portugal Continental, Lisboa, s/d.
Descrição do Carro de Bois e do Arado, Sem autor designado, Lisboa, 1868.
J. Leite de Vasconcelos, Etnografia Portuguesa – 5º Volume, Lisboa, 1933.
J. Leite de Vasconcelos, Boletim de Etnografia nº2, Lisboa, 1923.